Sobre o racismo: entre a esquerda e a direita

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Sábado, dia 16 de fevereiro, Maju Coutinho, jornalista da rede Globo, se tornou a primeira mulher negra a fazer parte da bancada fixa de jornalismo do Jornal Nacional. Para muitos, principalmente negros e militantes de movimentos sociais, isso foi um marco histórico. Para outros, principalmente homens e brancos, é claro, foi um evento irrelevante. Para entender melhor esse desdém por parte considerada da população, é preciso compreender antes que não se trata de puro racismo direcionado por pessoas que odeiam negros e querem eles exterminados (apesar dessas pessoas existirem e estarem nesse meio), mas entender que se trata de simples motivação política e ideológica. Essas pessoas sabem que o negro sofre na pele o preconceito diário, mas preferem pensar que tudo não passa de uma bandeira da esquerda mal-intencionada. Para essas pessoas, em sua grande maioria de direita, a esquerda só levanta essa bandeira porque quer seduzir o negro a votar em seus partidos, acusando esquerdistas de serem cínicos e perigosos por isso. Entretanto, a grande verdade é que essa direita nunca lutou contra o racismo institucionalizado do século 21. Esse papel caiu nos colos da esquerda, de graça, quase sem esforço, e de forma relevante.

Acho importante falar sobre isso porque nunca me considerei de esquerda. Pelo menos nunca me considerei parte dessa esquerda caricata que existe em DCE’s universitários e na internet. Muito menos já me considerei de direita, essa que quase não existia antes de 2012. Sempre tive aversão tanto ao conservadorismo social da direita quanto à ignorância econômica da esquerda. Mas antes de tudo isso, sempre me considerei negro. Pior. Sempre fui mameluco, essa mistura entre índio e negro que muitos acham exótica (no mínimo). E sabe por quê? Porque o mundo teima em lembrar para você, todos os dias, desde a sua infância, que você é diferente.

Tenho a sorte de ter tido pais incríveis. Meu pai, negro, filho de nordestinos que emigraram para o Acre e uma mãe que veio do interior do Amazonas, sempre batalharam muito para me dar tudo que eles mesmo nunca tiveram. Minha mãe, uma mulher forte, que já foi viúva antes dos 20 anos, se tornou uma empresária bem-sucedida. Meu pai, um homem amável e brincalhão, nunca me bateu ou me recriminou por nada relevante. São obviamente minhas inspirações. Mas sei que isso é um privilégio para quem tem meu tom de pele. E agradeço todos os dias por isso. Entretanto, isso nunca diminuiu o preconceito que sofri na escola, na rua e no meu psicológico.

Não quero entrar em detalhes biográficos, mas meu histórico de discriminação começou cedo, desde meus 8 anos, quando alguém mandou eu sair de uma piscina pública porque era preto e sujo. Desde aí, comecei a ser mais cínico e questionador sobre o que as pessoas pensam sobre mim e sobre o que faço. Por muito tempo evitei o confronto, hoje tento ser mais firme quando vejo essas injustiças, mas o ódio eu carreguei todos os dias dentro de mim.

A verdade é que por essa razão desde a adolescência eu via com simpatia a esquerda. Gostava do que eu lia, sobre o que eu assistia e sobre o que eu conhecia na história sobre esse movimento. Se você esmiuçar bem, a esquerda não nasceu com o propósito de acabar com o racismo ou preconceito étnico. Algumas fontes na verdade dizem o contrário. Entretanto, a esquerda monopolizou esse tema nesse século pois a direita foi imbecil o suficiente para achar esse debate irrelevante desde quando a escravidão negra acabou. Não quero me aprofundar nas razões desse comportamento. Talvez a direita americana tenha muito mais influência nisso do que outras direitas no mundo. Entretanto, é o que temos hoje no Brasil.

Mas o que é lutar contra o racismo hoje? É simples: é lutar contra o racismo institucionalizado na educação, na mídia, nas empresas e, principalmente, no estado. E o que é racismo institucionalizado? Sabe quando o policial para você e seus amigos, mas só os negros são tratados com rispidez e são revistados? Ou quando os programas de TV teimam em colocar negros como personagens secundários, quase irrelevantes, e muitas vezes com propósitos questionáveis (homem branco adora ver mulher mulata semi-nua, não é mesmo, Globeleza?). Ou também quando te confundem com segurança ou garçom de estabelecimento por estar de terno (se nunca passou por isso, as chances de você ser branco são altas). Pior, sabe quando te acusam por estar roubando um estabelecimento só por ser negro (as vezes até te matam)? Ah, tem mais uma. Sabe quando você é mulher, negra, e ascende por puro talento ao patamar mais cobiçado por jornalistas no país e te acusam por estar lá por pura cota ou lacração do jornal? Isso é racismo institucionalizado. Esse racismo não é direcionado nem explícito, ele não advoga o fim das conquistas negras nem alega que o racismo não existe e não deva ser combatido, mas ele é tão ruim quanto qualquer outro tipo de racismo, e está em todo lugar.

Não sou de esquerda. Pelo menos não dessa esquerda tradicional brasileira. Me descobri liberal aos 19 anos. O liberalismo me despertou olhares para problemas que antes eu nunca enxerguei. Problemas econômicos e sociais amplos e que abrange muito mais os debates que frequentemente são importados de outros países ou que são mais relevantes do que o nosso próprio interesse corporativista. Isso me fez levantar bandeiras tanto esquerdistas quanto liberais. Sou a favor da legalização do aborto, da legalização das drogas e ando junto com o movimento LGBT e negro. Também defendo mercados libertos e economia de mercado sustentável e justa. Recomendo muito a leitura de pessoas como Acemoglu, Amartya San, Rawls, Stuart Mill, Friedman, Harari, Mises, Walter Block, Adam Smith, Locke, entre outros. A esquerda aprenderia muito com eles. E, infelizmente, a direita também, já que apesar do termo, muitos liberais e conservadores preferem ler autores obscuros e irrelevantes. E atesto aqui, com louvor, que é sim a esquerda, seja ela socialista ou não, que hoje defende os negros com veemência. As vezes de forma até equivocada, mas sempre defendem. E isso é fruto do simples desdém de liberais que não conhecem o próprio liberalismo e não entendem que ele é sim antirracista e casa muito bem com valorização individual que o liberalismo tanto defende.

Que Maju Coutinho tenha sucesso em seu trabalho e que inspire milhões de garotinhas e garotinhos negros que é sim possível chegar lá um dia.